quarta-feira, 19 de maio de 2010

Quem cala consente

Desde 1994 até 2007 foram registados em Coimbra 5.560 casos de Violência Doméstica pela APAV. 589 decorreram em processos legais.
Apenas em 2002 foi considerada crime público. A Violência Doméstica existe. Apesar de ser maioritariamente de marido para mulher, abrange todas as idades, sexos e estratos sociais. A tendência não é para o aumento de casos mas para o número de queixas e de pedidos de ajuda. Acredita-se que existe mais consciência para a acção e cada vez mais informação disponível, o mito do silêncio do que se passa “dentro de portas” está a começar a desaparecer assim como o número dos que calam e consentem. O tema ainda assim é delicado assim como a ajuda, no entanto em Coimbra existem pelo menos dois locais especializados neste problema, a APAV e a secção de Violência Doméstica da GNR.

Começa cedo o dia de um técnico de violência doméstica, logo pelas dez da manhã surgem os primeiros telefonemas, acções de sensibilização, seminários, palestras e, pedidos de ajuda. Natália Cardoso, uma das responsáveis pelo GAV de Coimbra, explica entre diálogos interrompidos por telefonemas e papéis o que faz no seu gabinete, que apesar de pequeno, já acolheu algumas centenas de vítimas e onde curiosamente se pode encontrar uma embalagem de lenços de papel prestes a acabar.

Salta logo à vista um cartaz numa das paredes relativo a uma campanha onde se pode ler “ Quem cala consente. Não se cale. Se foi ou conhece alguém que foi vítima de crime não se cale. Não consinta.”. Natália explica como tudo começa, com um telefonema. As vítimas de violência doméstica ligam a pedir ajuda de todos os tipos, psicológica, jurídica, social ou apenas para falar com alguém, para desabafar. O trabalho dos técnicos do GAV é tentar o mais possível trazer essas pessoas à sua presença uma vez que “o apoio presencial é muito mais eficaz”, como afirma Natália.

A jurista confirma que presencialmente existe uma melhor percepção do que se passa em cada caso e diz ainda que “a violência doméstica é maioritariamente conjugal ainda que pontualmente apareçam casos de filhos agressores e de idosos vitimados, este tipo de violência dá-se normalmente em ciclo. Existe uma primeira fase de tensão em que aumentam as discussões e começa a agressão verbal, a explosão onde se dá o chamado rebentar do saco e ocorre e agressão física e finalmente a dita fase de lua-de-mel em que o agressor se arrepende e faz tudo para que a vítima o perdoe”.

Já com o tempo escasso Natália explica que não pode entrar em detalhes sobre cada caso pelos contornos de sigilo dos mesmos, de qualquer forma pode afirmar que “cada caso é um caso e somos formados com vista a tratá-lo como tal”, a APAV pretende então acima de tudo encaminhar as situações de acordo com a especificidade de cada uma e prestar o máximo de apoio psicológico às vítimas que passam a porta de cada gabinete. Como ONG não possui o poder de representar legalmente as vítimas ou de lhes fornecer o apoio económico directo, pode no entanto orientar cada situação para, por exemplo, uma casa de acolhimento ou para um novo emprego.

Existe um mito de que a violência doméstica ocorre na maioria em meios rurais, Natália confirma-nos o contrário. “ Tanto numa aldeia perdida no interior como aqui no centro de Coimbra, existe crime, pode no entanto existir uma maior propensão à apresentação de queixa nas classes mais baixas, não por haver mais casos nesta classe mas pelo facto de classe alta não se querer expor e ter outros meios de resolver a situação, podem ser advogados e psiquiatras mas pode também ser o silêncio pela vergonha social no seu estatuto”. Natália Cardoso despede-se assim apressadamente e regressa ao telefone e aos papéis que fazem parte da sua vida há mais de dez anos, anos em que a violência está tão presente na sua vida que já passou “da ferida ao calo”.

Já o sol vai alto quando outro especialista nesta área dita as primeiras palavras em tom ameno e paternal, Vítor Simões, cabo chefe da GNR de Coimbra, começa então a revelar um pouco do que se passa do outro lado. “ É depois da queixa que entramos em acção, acção que passa pela realização de inquéritos e da apreensão de possíveis armas”. Vítor Simões diz que infelizmente a percentagem é de noventa e nove homens para uma mulher agressora, “ainda temos muitos machos latinos que se acham capazes de usar e abusar das mulheres e parecendo mentira ainda se indignam aquando questionados com respostas como bato e o problema é meu, bato quando quiser e ninguém tem nada a ver com isso.” 

O agente da autoridade explica ainda um caso-tipo dos cerca de já duzentos desde o inicio do ano, “Chega-nos às mãos um caso de uma mulher casada há dez anos que se queixa de ter sido batida e agredida constantemente há uns meses para cá, as agressões psicológicas já duram há bastante tempo, mas a agressão começou há uns meses. A senhora afirma ter pensado que seria uma fase mas na sequência da brutalidade e repetição das agressões decidiu apresentar queixa. Avançados com os processos legais, auto de denúncia, relatórios da medicina legal, é oferecida protecção imediata até porque o marido a terá ameaçado e aos filhos com uma arma perante a possibilidade de divórcio. A partir daí está nas mãos da justiça e o que mais podemos fazer é interrogar envolvidos e testemunhas e tentar apurar a verdade. Tudo o que tenha a ver com acolhimento, protecção e condenação é apenas encaminhado”. Com alguma tristeza e pesar, Vítor Simões remata dizendo que estes processos são demorados apesar de já ter havido uma evolução significativa e que todos os cidadãos são obrigados a reportar qualquer tipo de violência doméstica uma vez que é crime público.

Acaba assim o dia quase na pele de uma vítima mas ainda mais na pele de quem trata de todos estes casos que parecem não ter fim a julgar pela quantidade de papéis envolvidos e pelas histórias quase mórbidas que se vão ouvindo. Acaba também com uma frase no ouvido, “Quando o Benfica perde levamos todos!”.




Natacha Meunier

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